O dia começa amanhecer em São
Paulo, sábado, 22 fevereiro de 2013, partimos Rafael e eu, entusiasmados
para Cananeia e as localidades costeiras que conformam o complexo estuarino de
Cananéia-Paranaguá, o Lagamar. No bagageiro do carro: mochilas, caixas, água,
utensílios diversos e, para minha surpresa, barraca de acampar, fogareiro, frutas e
outros alimentos. Diante de minha cara de surpresa ao abrir o bagageiro, Rafael explica: nunca se
sabe o que vai acontecer e o que podemos precisar...
Esta frase representa bem nosso
método recém-combinado de trabalho. Se o destino- objetivo estava definido - continuar
o (re)conhecimento de potenciais locais, nos dar a conhecer e perceber o que
poderia nascer desta interação - a trajetória apresentava-se aberta...o
real não está na saída, nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia. Fazia muito sentido esta máxima do Guimarães Rosa.
Nossa bagagem de ideias guardava atividades possíveis e compartilhadas:
mapeamento fotográfico realizado com os jovens, apresentação da plataforma da
Rede Canoa Jangada aos moradores locais e com eles registrar alimentar o
mapeamento dos potenciais, um encontro dos mestres artesãos, músicos, pescadores
e pescadoras, costureiras... Se iríamos utilizá-la dependeria dos acontecimentos.
Após uma parada em Pariquera-açu
para resolver pendências da semana com a certeza do acesso a internet e almoçarmos,
pegamos uma estrada de terra rumo à Reserva
Extrativista do Mandira. De lá, teríamos
pela frente mais 56 km em estrada de terra até
o Ariri, último povoado na franja do
continente.
Veja lá o local no mapa no http://maps.mootiro.org/project/52/map
Comunidade Quilombola Mandira
Primeiro encontro: segundo nossos
planos falaríamos com Chico Mandira, retomando o contato iniciado na primeira expedição em sua
casa, na Comunidade Quilombola Mandira. Mas quem encontramos? O pescador
Zacharias, no Porto de Mandira, consertando o barco de seu cunhado. Não o
conhecíamos. Estava tapando os buracos feitos pelo gusano (molusco que cava
buracos nas embarcações). Viam-se muitos barcos cheio de buracos no porto,
alguns doados e encostados já sem uso. Zacharias comenta, a modo de filosofia: as
pessoas não ligam pras coisas, principalmente quando não são elas que compram,
quando consegue fácil, não cuidam, não
dão valor. Para reforçar mais ainda sua ideia nos indica ali no porto o motor de um barco doado à comunidade por um
projeto, quebrado há muito tempo. São
equipamentos provenientes de projetos, doados por ONGs, que quando se estragam ficam lá, não usam
mais, explica ele.
A conversa desenrolou solta com
Zacharias. Ele só nos perguntou se éramos de alguma ONG. Ficamos meio intrigados
com sua falta de curiosidade quando falamos da ideia da Rede Canoa Jangada.
Assim como ele, as outras pessoas que vamos encontrando ao longo da viagem
também não mostravam interesse em saber o
porque estávamos ali e o que viemos fazer. Ao comentar brevemente sobre a iniciativa da Rede, o assunto se encerrava, não
despertando perguntas e outros fios de conversa.
Mas, o mais importante desta
parada foi o filosofar de Zacharias
que nos instigou, provocando uma pergunta que não quer calar: quais os desdobramentos e impactos na vida das comunidades de tantos
aportes de fora: financeiros, equipamentos, assessorias técnicas, em povoados que não tem a cultura do acúmulo, do
desenvolvimentismo, típicos da
sociedade urbana e de consumo?
Não encontramos Chico Mandira,
cujo sobrenome identifica a comunidade. Ele é descendente direto da família extensa de
quilombola que habita o lugar há varias gerações. Atualmente com cerca de 12 domicílios, as casas estendem-se, distantes uma das outras, ao
longo das margens da estrada e próximo ao Porto de
Mandira, dentro do Parque Nacional do Mandira.
Com as atividades produtivas
organizadas por meio da Cooperostra – Cooperativa dos Produtores de Ostra de Cananeia e pela Associação
dos Moradores Extrativistas do Mandira, os pescadores vivem, praticamente,
apenas da extração e da engorda de ostras, com uma contribuição marginal da
pesca de variados tipos de peixes e camarões.
Além da pesca há o grupo de mulheres costureiras do
Mandira que não pudemos contatar desta vez porque estavam reunidas
em um encontro de uma comunidade religiosa acontecendo
no Centro Social da Associação .
Há organização de passeios ecológicos para a
Cachoeira do Mandira, como pode se observar em uma placa muito bem
escrita e vistosa no quintal da casa de Zacharias. É um lugar belíssimo, imperdível! E não perdemos. Uma surpresa
refrescante no meio da mata, para tomar banho, nadar, tirar o cansaço da longa viagem a 20km/h em
estrada de terra. Um brinquedo de
balanço pendurado no alto de uma árvore, a trilha bem cuidada e a boniteza do
lugar não deixam dúvidas que é um espaço bem frequentado.
Revitalizados pelas águas do rio e cachoeira, pensamos: aí
está um lugar ótimo e pronto para promover um grupo de aprendizagem em turismo
ecológico mediado por interessados na promoção da Rede Canoa Jangada. Será?
Comunidade do Ariri
Final da estrada de terra. Uma primeira
e boa referência de contato é Zé Pereira,
que Rafael conheceu há dez anos atrás, quando comprou dele uma canoa. Sua casa
fica na beira da estrada, com uma varanda , dois bancos que quando sentados nos
deixam frente a um varal com rabecas, violas, violões pendurados, de forma
bem visível para quem passa pela rua.
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O Mestre Zé Pereira e suas criações: o olhar para o futuro materializa-se nas aulas de rabeca e viola que conduz voluntariamente com jovens na comunidade do Ariri. |
Ao nos aproximarmos da casa somos
logo convidados para sentar, iniciando-se uma longa prosa na varanda – mulheres de um lado e
homens do outro. Rafael apresenta-nos falando de onde viemos. Zé Pereira não o reconheceu. E nós, como conhecer Zé Pereira? Em sua prosa solta e alegre vai
revelando suas múltiplas habilidades: pescador, artesão de barcos, músico e
mestre de fandango, lutier e durante a semana, funcionário de limpeza pública da prefeitura: um
verdadeiro brincante. Tivemos dois encontros em sua casa, com muita história sobre o fandango e, porque não,
umas tentativas de parceria nos acordes.
As histórias contadas por Zé
Pereira e também por outros moradores do lugar nos deixam pistas sobre mudanças
advindas da criação dos Parques e Reservas na região: êxodo das famílias de suas roças, ilegalidade e clandestinidade da extração do
palmito juçara e outros itens, e com isso
o abandono das práticas de mutirão para o plantio e colheita e a
dependência do consumo e do mercado. Conta-nos
Zé Pereira que antes se fazia mutirão para tudo. Além da roça e da pesca, a
construção das casas, abertura das ruas, manutenção das vilas... E o fandango
era o pagamento comum pelo suado dia de trabalho de homens e mulheres. Era a
moeda local. Sem os mutirões também foi se perdendo as
festas do fandango. Mas a solidariedade do pessoal continua, exclama sua mulher,
contanto a ajuda entre vizinhos.
Fandango
E hoje seu Zé Pereira, apoiado pelos que valorizam este patrimônio
cultural dá aula de rabeca e de outros instrumentos, emprestando aos alunos os instrumentos de seu próprio
fabrico. Conta-nos, orgulhoso e ciente de seu talento, sobre o CD que gravou e
as apresentações que tem sido convidado para realizar, inclusive na Av.
Paulista em São Paulo. Compõe, toca e
ensina tudo de memória, suas músicas não são registradas. Está aí uma tarefa importante a ser feita
para preservação e disseminação de sua arte: registro musical de suas
composições.
Continuar ensinando a tocar e
fabricar rabecas, violas, violões, ampliar os grupos de alunos, deixar vivo o
fandango são os sonhos de seu Zé Pereira, Lúcia e outras pessoas do
Ariri. Um projeto: estão envolvidos na ideia de fazer um Museu do Fandango com oficinas de música,
dança, instrumentos, CDs, livros, vídeos, entre tantos materiais e ações
coletivas que possam reconhecer e reviver a cultura viva do fandango.
Produção nos quintais
Valber, jovem participante da
Rede de Cananeia, conhecido de Rafael da primeira expedição, nos apresenta Lucas e, juntos com a mãe, tia,
tio e avó, ficamos boas horas da manhã proseando e conhecendo as habilidades da
família Coelho. São bons conversadores e participantes motivados das reuniões
da ACARI - Associação dos Moradores
da Comunidade Caiçara e Amigos do Ariri, dizem eles.
Lucas presidente da Associação,
fala sobre seus trabalhos e principalmente da
dificuldade de se fazer projetos que envolve plantio e colheita
sustentável nos próprios quintais das casas.
Conta-nos sua experiência com a colheita do palmito juçara, quando feita
de forma sustentável e como sua exploração foi empurrada para a clandestinidade
quando a região virou Parque Florestal.
Ao falar das ideias que tem,
Lucas expõe entusiasmado sobre o plantio
do palmito juçara nos quintais das casas, mas a coisa não vai para frente,
segundo ele, porque esbarram nos
obstáculos burocráticos para a liberação do uso da terra pelos próprios
moradores tradicionais. Ele não soube nos informar porque não se liberam os “processos”. Esta aí
uma questão que poderíamos ajudar destrinchar. Porque não conseguem
a liberação de processos se o cultivo seria feito de forma artesanal pelos
próprios moradores do lugar?
Dona Izildinha nos fala
orgulhosa dos costumes antigos, quando não precisava comprar as coisas de casa.
Faziam cadeiras de fibra de sapateiro, travesseiros, sofás e colchões com capim
e marcelas (flor silvestre com perfume agradável, utilizada como relaxante). Conhecemos
também os covos (armadilhas de peixe)
fabricadas pelo tio de Lucas.
No dia seguinte conhecemos o
local onde Lucas e seu irmão, que também já fora presidente da Associação, estão
construindo um salão para ser a oficina das costureiras, projeto apoiado
pela Associação e pelo IPÊ. Outro grupo para conhecermos!
Barra do Ararapira
Seguindo viagem, agora de barco, atravessamos o canal chegando ao
Paraná em sua primeira parada: Barra do Ararapira. É uma comunidade costeira, paradisíaca, com
aproximadamente 40 famílias, que vivem ali também há várias gerações de forma
autônoma e sustentável.
Na margem da Barra de
Ararapira, avista-se, do outro lado, a enseada da Baleia em São Paulo onde
atravessamos de canoa a remo. Andando na sombra de sua única “rua”, na verdade uma trilha larga,
densamente arborizada, passamos por casas-pousada, o correio, o centro
comunitário, o posto de saúde e a casa de cataia onde um grupo de mulheres beneficiam as folhas de cataia para chá e a famosa pinga de cataia .
Seu Santiro, sua esposa dona Maria, filhos e outros parentes nos
recebem e convidam a compartilhar a sombra da árvore onde conversavam. Pedimos
um lugar para ficar e pousar por ali. Seu Santiro nos ofereceu dormidas e
refeições em sua casa.
A volta da mesa, tomando lanche,
Dona Maria, nos conta entusiasmada como faz pinga com cataia. Antes, só faziam chá e secavam as folhas para
vender, disse ela. Depois, seu
cunhado inventou de deixar as folhas na pinga, tornando-a muito saborosa e sua
fama atravessou os mares, nascendo aí um próspero negócio. E assim propaga-se também as propriedades da erva conhecida e também indicada
pelos médicos para problemas respiratórios,
como afirmam as mulheres do local.
Mas, não basta só falar, é
preciso conhecer a erva e assim somos guiados pelo quintal repleto de pés de cataia
cuidadosamente cultivados. É preciso plantar e principalmente saber como pegar suas folhas para não deixar
morrer a planta explica dona Maria.
A acolhida, a beleza do lugar, a
conservação e o modo de vida sustentável daquela comunidade, apesar de muito
rústica, ascendeu a ideia de se fazer
uma expedição turística. Seria uma expedição entre culturas, onde as
pessoas da cidade pudessem aprender com o modo de vida do caiçara e o caiçara
pudesse conhecer um pouco da vida das gentes da cidade.
Cananéia
Pescado bom é na prosa aberta! Bela assertiva dos
pescadores que dá nome ao projeto de fortalecimento da pesca artesanal
apresentado por Tatiana, da comunidade de Enseada da Baleia e Colônia dos
Pescadores de Cananeia. Ela nos contou a história das três gerações de
pescadores de sua família na Enseada da Baleia, a organização da Associação e
do trabalho continuado que articula e enreda pescadores e pescadoras das famílias da Enseada passando de
geração a geração: pescar, limpar o peixe, salgar, vender, fazer artesanato com
os elementos do lugar e paisagens que só lá tem.
Criar um rótulo, uma
marca do peixe artesanal,
para que as pessoas que compram saibam que foram pescados
artesanalmente, sem dano ao ambiente, ampliar os pontos de venda, criar uma loja virtual foram ideias que
circularam ali em nossa conversa. A conversa
foi ilustrada com os folhetos com fotos, bem elaborados pela própria Tatiana.
Ao comentarmos sobre a bonita concepção do nome e do folheto Pescado Bom é na Prosa Aberta, Tatiana
comenta toda satisfeita: Fiz um curso pra
fazer folhetos no computador e estou
pondo em prática.
O dia vai terminando com uma
tarde muito quente na terça feira, dia 26 de fevereiro. Arrumando nossas bagagens
para a volta, bem alimentados com tudo isso que fomos ouvindo nos trajetos, retornamos
aos nossos interlocutores e consultamos sobre a possibilidade de fazermos um encontro onde pudéssemos trocar informações do que cada grupo está
fazendo e pensando e juntar nossos esforços para aprender juntos como realizar
o que estão planejando. Precisamos
saber melhor como seria isto responderam cautelosos, mas parece ser uma boa
ideia.
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